quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Microconto n.º 3: O Velho Rabugento


Elias Natavidade olhava , todos os dias ,para o tecto de sua casa. Via o céu azul, os pássaros a recortar as nuvens passageiras , o sol a esconder-se entre pingos de chuva e , ocasionalmente, um arco-íris enchia-lhe a alma.

Todos os dias , olhava o espelho, antes de sair de casa.Arranjava os poucos cabelos, limpava os óculos garrafais, fechava , à pressa, a braguilha e ,curvado, batia com a porta.

Manifestos , panfletos e ladainhas ideológicas misturavam-se com os produtos milagrosos contra a evasão capilar, em enorme vitrinas, polidas pelos cidadãos obedientes.

Elias, em passo acelerado, chega à uma das casas de “strip ideológico”. Mete-se numa cabine e, sem se mexer, pronuncia palavras contra o vizinho, o chefe da aldeia, a mulher do peixe, o carregador de pianos, o burguês imprevisto, a fingida cibernética e o cão do talhante. 

Volta para o lugar seguro , o seu sofá coberto de panos com galos e outras pantominices, de sua casa. Antes de regressar, compra o jornal, num acto irreflectido, e como não concordava nada com o que escreviam , usou-o para embrulhar duas romãs, que saltavam das árvores , no Jardim da Liberdade.

Fechou a porta de sua casa. Pousou as romãs junto dos óculos esquecidos.Encerrou-se no seu mundo e ao olhar para o pé direito de sua casa, percebeu que tinha telhados de vidro.

Todos os Direitos de Autor Reservados

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Microconto N.º2: Vintage Existenz




     Tadeu Izubiarco não tinha telemóvel. Não tinha computador. Não tinha internet. Naquele dia, de um enjoado  Fevereiro ,recebia um cartão de um velho amigo, que tinha emigrado para a casa ao lado, na rua de sempre. O cartão trazia um número de telemóvel -991517634-um endereço eletrónico e uma morada de uma loja de informática.


   Tadeu retirou um papel , uma folha e escreveu, com uma caligrafia pausada, ao amigo. Uniu os nove números que tinha no cartão: Nove pessoas passam à tua entrada todos os dias- O padeiro, o leiteiro, o ardina, o cobrador de impostos, o jardineiro, o motorista do  trinta e sete , o filho da vizinha, a vizinha e o homem que carrega o lixo-. Há nove meses que não te vejo. Há um ano que deixastes o emprego. Há cinco que casastes com o filho do teu pastor. Há um ano que não sais para levar o amor à vizinha do sétimo esquerdo. Há sete anos que não jogas na lotaria. Há seis meses que não entras num templo. Há três anos que não reparas no teu País esburacado... Há quatro dias que não vejo a luz acesa na tua casa. Desconfio que adoecestes e ninguém te avisou.

    Selou a carta, escreveu a morada e entregou ao carteiro.

   Pelo menos, por um dia, mais uma pessoa levaria ao amigo de Tadeu, notícias de outro mundo...
(Todos os direitos de autor reservados)



segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Microconto N.º1 : Sessenta Quilómetros Hora

Leónidas Robometálico monitorizava, no centro de tráfego urbano, um ford vermelho. A fiesta agridoce começava. Leónidas conseguia ouvir as mentes dissonantes dos condutores; sempre à procura do elixir da felicidade eterna. Uma cacofonia imprecisa pintalgava harmónicas melodias. Eis o sistema de som das almas humanas!
As mentes não obedeciam aos corpos retalhados pelas emoções universais: o medo do desconhecido, a ânsia de amor eterno, o desejo da foda perfeita ou o lugar quente da morte certa.
Robometálico queria ter asas para voar para o sétimo círculo. Não era a colonização humana que receava, era a clonização que o impressionava. Sempre os mesmos lugares comuns, os mesmos rituais, as mesmas conversas, as mesmas rotundas para circundar, para não sair de sítio algum.
Entre um cigarro, a queimar-lhe as pontas dos dedos e uma cerveja abundante, Leónidas desligou a maquinaria do centro de vigilância. Os ratos humanóides, obcecados pela bulimia dos sentidos, continuavam a acelerar… Leónidas,   o herói do trânsito existencial , tinha um corpo para manter e uma alma para resgatar…
Num impulso eléctrico, desligou a luzes. Quando se preparava para sair, surge uma leoa de olhos faiscantes, curvas perigosas e dentes prontos para acção. Encostou-o à parede, para o revistar pelas infracções ao sentido da vida. Sentiu o seu sinal, entre as calças, a ficar vermelho. Quis entrar …Leónidas resistiu à velocidade do desejo. Acabou por ceder e  aumentar a rotação da insensatez. Fez ali a revisão, em cima da mesa, sem luz, sem nada…
A síntese dos corpos não apagava a dialéctica dos espíritos derretidos. A mulher desapareceu em direcção ao fim do mundo, onde não há placas de trânsito, nem fiesta que nunca acabe…
De súbito, ainda a apertar as calças, surge o chefe Leão da Areosa:
- Que vem a ser isto?..
- Estive a rezar, chefe…Vai uma passa?...
  Eis que o mundo torna-se, novamente, insanamente, o possível…

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Notas Analógicas em Ambiente Digital -II


 "O Século XXI será religioso ou pura e simplesmente não será."(André Malraux)

 
A disjunção da expressão permite que, a previsão de Malraux, seja sempre lógica. O que não é lógico é o extremismo de posições em defesa ou contra a religião. Uma única visão do mundo e de organização social só levam à intolerância, à barbárie e à destruição inata do Ser Humano, que tem necessidade de uma dimensão transcendente.

Mais que religioso, o Século XXI será espiritual. Os ciclos repetem-se na história , com pequenas variações. A seguir a um ciclo materialista e tecnológico virá o ciclo da espiritualidade e vice-versa. Se assim não for, como profetizava Malraux, estaremos a entrar no horizonte da insanidade e da via suicidária colectiva.

A religião deixou de ter um arco de magia e uma seta mitológica. O Humano, na sua perene e frágil dimensão , procura o alento quotidiano da alma.  Vejam-se as constantes frases, esquemas, imagens, desenhos, que os cibernautas colocam no espaço virtual como lidar com a vida.  Como se a vida tivesse um ensaio geral ou uma bússola , que indicasse o caminho , mas não a geologia do mesmo.

     Somos passageiros de um espaço, que não é nosso , de um tempo que não dominamos. Qualquer tentativa de interpretação, não dissolve o mistério que abarca, qualquer explicação do sentido da vida.

Foto: Jon Bagt

Notas Analógicas em Ambiente Digital- I



           É o processo que torna as coisas sublimes. O ritual, a forma, o toque e o indizível do momento.  Focados só no resultado , o Humano entra em regressão. Desloca-se para um tempo e para um espaço que ainda não existe, que quando se revelar, será presente . Após um passo vem outro. Esta ânsia de resultado  de uma geração iogurte ( se passa o prazo já não presta) torna as pessoas intolerantes e impacientes.  Todas opinam, todas querem ter razão, todas querem tudo para ontem…Inundados entre a tragédia da notícia e o mundo épico da imagem , da publicidade ( a maior máquina de modelação comportamental humana, porque subliminar) , o Humano torna-se igual na sua auto-referencial diferença. Eis o drama da globalização. Neste adormecimento da razão crítica, todos se banham no mesmo rio . Julgam dominá-lo, mas é ele que os conduz…


Foto: Jon Bagt