domingo, 15 de junho de 2014

Microconto n.º11: Pai Herói


Carlos Leão limpava uma fotografia do bisavô. O velho Leão exibia uma bengala e um farto bigode. A mulher e os filhos, aos pés, olhavam-no com admiração. Carlos tinha dois filhos de tenra idade. A mulher, Adélia, era uma magistrada famosa que interrogava os mauzões durante horas a fio. Carlos limpava as pratas, alinhava os pratos para o jantar, deixava a comida em boiões e preparava o leite das crianças antes de sair de casa. Durante o dia corria de um lado para o outro: Era estafeta de uma empresa de pizzas e na hora de almoço vendia cautelas que andariam à roda no dia a seguir. Depois de pagar as contas e telefonar ao canalizador para consertar um cano arrebentado,  Carlos conduzia em direcção ao infantário para recolher os bebés.  Horas de estio ao trânsito e ao berradouro das crianças. Quando chegou a casa, ligou a televisão para ver o futebol. Tirava a t-shirt e com fita-cola prendia os biberões ao peito depilado. A bola rolava e as crianças chupavam. No intervalo, aproveitava para deitar as crianças e, finalmente, encostava-se para ver a segunda parte do jogo... Adélia chegava a casa com um loiro de um metro e noventa. “ É o meu arguido e vai cumprir pena comigo”, “ Ritz cumprimenta o Carlos…Hai!”…E no momento em que a bola entrava na baliza adversária, Carlos Leão olhava para a foto de família e prometia ao bisavô que iria deixar crescer o bigode…

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Roque Livreiro

   Jeremias Lévi era escritor de sucesso. Vendia livros como cerejas. Multiplicava a voz do narrador em múltiplas vozes na hora da venda. Adaptava o discurso a cada um dos seus leitores: Prometia cama às novas, o paraíso às velhas, fortuna aos descamisados, alma aos milionários e milagres aos descrentes.

    Com o lucro das vendas, Jeremias comprou vinte igrejas pelo País. Os santos foram substituídos por fotos de Lévi e os altares transformados em prateleiras com os seus livros. 

   Todas as semanas Jeremias debitava o que as pessoas queriam ouvir : mentiras almofadadas  sobre as quais se ajoelhavam para tomar a palavra…

    Até que um dia numa procissão de velas, distraídos com a eloquência de Jeremias,  os leitores deixaram arder os livros…

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