terça-feira, 4 de novembro de 2014

Microconto n.º 12: Um desfile de encantar



         Inês Castanheira é branca como a neve. O corpo derrete-se ao espelho sempre que os olhos de Pedro Sottomayor a vestem. Hoje, neste dia quente de Novembro, é apresentada a colecção Outono-Primavera. As travessuras do tempo mudam o ritmo das estações. Pedro combina as texturas das folhas de outono com os padrões da fruta primaveril.

A Modelo observa os seus braços e pernas. Estendem-se ao sol como ramos floridos. A cabeça está adornada com uma maçã vermelha. Inês veste a inocência imprevista misturada com a decadência improvisada. Permanece imóvel junto ao espelho. Como uma deusa inacessível.

 As outras modelos não trazem nada vestido. Rodopiam em volta dela como o vento. Serpenteiam a maçã com estilo e languidez. Os flashes dos trovões iluminam a passerelle. Cada uma das modelos despe Inês e vestem-se com as suas roupas. Deixam-na só com a maçã carnuda…

Inês olha para um lado e vê o inferno. Olha para o outro e vê o paraíso. Trinca a maçã e cai ...O público levanta-se e aplaude em pé como  árvores perdidas no meio da floresta .

Pedro entra em cena vestido de noiva. Aproxima-se de Inês e leva-a nos seus braços de volta à terra prometida, onde tudo é frágil e efémero como belo e imortal…

© Jon  Bagt
 
 
 

domingo, 5 de outubro de 2014

Música...


Escrita...


Escrita Kafkiana
Bodleian Libray Oxford

O Leitor...



Oxford
Foto: JonBagt

O Homem-Rato ou Ecce Homo 3.0



O universo não é o um lugar de inteligibilidade. Um homem não é um ser mais civilizado que no passado. Tecnologicamente mais avançado, mas mentalmente continua primitivo. No entanto, uma mancha invisível avança sobre o inconsciente colectivo .

Os grande impérios da história forjaram o seu domínio com base em ferro e fogo.  Os escravos conheciam a sua condição. Mão –de-obra gratuita que erguia e mantinha os impérios.

Hoje, o escravo não conhece a sua condição. E se a conhece, não se liberta dela por medo ou conveniência. Não aguenta a censura social. Não suporta ouvir verdades incómodas, mas adora mentiras sociais e confortáveis. Faz lembrar o prisioneiro a quem o carcereiro deixa a chave na porta...

Assistimos à total banalização das relações humanas significantes. Ninguém cria laços, uma vez que a necessidade é substituída pela hiperligação da conexão permanente. A bulimia das sensações alimenta a insaciabilidade dos instintos e a simulação da ligação afectiva. É o tempo e o espaço físico que construem relações humanas densificantes e duradouras.

A máquina mediática ensaia nos novos escravos a perpetuação da sociedade do prazer. Não importam as pessoas. Importa o rodopio das sensações e das proezas do ego.

Em situações de pressão e de crise, aumenta o comportamento aditivo e de indiferença. A banalidade da imagem trágica incomoda, mas não muda o comportamento humano. É lá longe e virtualmente o homem pode ser senhor e não escravo.

As corporações secretas e financeiras ,desde os anos 30 do seculo XX ,aperceberam-se do elixir do poder eterno: Dar a ilusão de liberdade aos cidadãos e oferecendo bens de consumo à la carte. De vez em quando produzem uma crise, para testar se o homem continua a colocar no centro da sua felicidade  o dinheiro  , bens materiais ou tecnológicos. Quase como um estudo de mercado. E se mesmo assim não são convencidos , nada como implementar o marketing 3.0 e dar a ilusão que o produto trará status, abundância e amigos…

Mas domados no consumo e na comparação com o vizinho como é que o homem pode ter outros critérios de felicidade terrena? ...Se até , historicamente, as igrejas  e as religiões cobravam o seu tributo…

Eis a fraqueza humana a alimentar  a roda do mundo, eis o Homem -Rato no seu apogeu,  eis o Ecce Homo 3.0 num império invisível que parece  não ter fim…

 

domingo, 15 de junho de 2014

Microconto n.º11: Pai Herói


Carlos Leão limpava uma fotografia do bisavô. O velho Leão exibia uma bengala e um farto bigode. A mulher e os filhos, aos pés, olhavam-no com admiração. Carlos tinha dois filhos de tenra idade. A mulher, Adélia, era uma magistrada famosa que interrogava os mauzões durante horas a fio. Carlos limpava as pratas, alinhava os pratos para o jantar, deixava a comida em boiões e preparava o leite das crianças antes de sair de casa. Durante o dia corria de um lado para o outro: Era estafeta de uma empresa de pizzas e na hora de almoço vendia cautelas que andariam à roda no dia a seguir. Depois de pagar as contas e telefonar ao canalizador para consertar um cano arrebentado,  Carlos conduzia em direcção ao infantário para recolher os bebés.  Horas de estio ao trânsito e ao berradouro das crianças. Quando chegou a casa, ligou a televisão para ver o futebol. Tirava a t-shirt e com fita-cola prendia os biberões ao peito depilado. A bola rolava e as crianças chupavam. No intervalo, aproveitava para deitar as crianças e, finalmente, encostava-se para ver a segunda parte do jogo... Adélia chegava a casa com um loiro de um metro e noventa. “ É o meu arguido e vai cumprir pena comigo”, “ Ritz cumprimenta o Carlos…Hai!”…E no momento em que a bola entrava na baliza adversária, Carlos Leão olhava para a foto de família e prometia ao bisavô que iria deixar crescer o bigode…

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Roque Livreiro

   Jeremias Lévi era escritor de sucesso. Vendia livros como cerejas. Multiplicava a voz do narrador em múltiplas vozes na hora da venda. Adaptava o discurso a cada um dos seus leitores: Prometia cama às novas, o paraíso às velhas, fortuna aos descamisados, alma aos milionários e milagres aos descrentes.

    Com o lucro das vendas, Jeremias comprou vinte igrejas pelo País. Os santos foram substituídos por fotos de Lévi e os altares transformados em prateleiras com os seus livros. 

   Todas as semanas Jeremias debitava o que as pessoas queriam ouvir : mentiras almofadadas  sobre as quais se ajoelhavam para tomar a palavra…

    Até que um dia numa procissão de velas, distraídos com a eloquência de Jeremias,  os leitores deixaram arder os livros…

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