quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

TABACARIA...NA AUSTERIDADE,,,



 
 

Dedicada ao Sr Fernando , que sendo Pessoa, não sabia quem era ou queria ser fútil e tributável, como todas as pessoas…E estando bem morto, continua vivo…


 Não tenho nada.
 Nunca terei nada.
 Não posso querer tudo.
 À parte isso, tenho em mim todas as consolas do mundo.

 Tenho em mim a dupla personalidade...( do palhaço-rico e do palhaço-pobre).
 Porque o circo é o de sempre…e o pão, a carcaça bolorenta do tempo...


 Janelas do meu computador,
 Do meu computador de um dos milhões do mundo -que ninguém sabe quem é-
 (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
 Dais para a evidência de uma rede cruzada constantemente por gente,
 Para uma rede acessível a todos os pensamentos,
 Virtual, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
 Com o mistério das finanças por baixo dos mercados e dos especuladores,
 Com o rating a pôr ranhos nas paredes e cabelos brancos nos homens,
 Com a irracionalidade a conduzir a besta para toda a carga , pelo poço dos sem vintém.


Estou hoje falido, como se soubesse a mentira.
Estou hoje confuso, como se estivesse para viver,
E não tivesse mais paciência com os mercados
Senão uma despedida, tornando-se este País de faz de conta, este lado da rede.
A fileira de carruagens de um comboio para o abismo e uma partida adiada…


De dentro do meu estômago,
Cansado de levar murros com tanta ranger de queixos e palavas vãs…


Estou hoje lúcido, como quem julgou pensar, perdeu e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a deslealdade que devo
Aos governantes inócuos, do outro lado da rede, como coisa irreal por dentro,
E à sensação de que tudo é pesadelo, como coisa real por fora.


 Acertei em tudo.
 Como não fiz propósito nenhum, talvez nada fosse tudo.
 A aprendizagem de previsões que me deram,
 Desci dela pela janela das traseiras da tipografia.
 Fui até ao Terreiro do Paço com grandes propósitos.
 Mas lá encontrei só ervas daninhas e figueiras estéreis,
 E quando havia gente era igual à outra.
 Saio da janela, sento-me numa cadeira, a do poder. Em que hei de pensar?


 Em nada,
 As cadeiras do poder são cadeiras de condenados à morte,
 Que esvaziam todo o pensamento…


 Que sei eu do que terei, eu que não sei o que tenho?
 Tenho o que penso? Mas tenho tanta coisa emprestada!
 E há tantos que pensam ter a mesma coisa que não podem ter tanto!
 Asno? Neste momento
 Cem mil asnos se concebem em sonhos europeus desvanecidos, como eu,
 E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
 Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.


 Nem Hércules limpará o rabo dos Bois de Augias,
 Nem Ulisses voltará a Europa…
 Sim, creio em mim, mais que no outro …



Em todos os governos há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma dúvida, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas águas – furtadas ( verdadeiramente furtadas e não roubadas)   do mundo,
Não estão nesta hora génios de pacotilha corporativista conspirando?
Quantas manipulações altas e nobres e lúcidas
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas
E quem sabe se realizáveis,
Verão a luz do sol real e acharão ouvidos de gente que quer ouvir mentiras reconfortantes a verdades inconvenientes?
O mundo é para quem nasce para o abandonar
E não para quem o conquista mesmo sem razão



 Tenho sonhado mais que o que D. Sebastião fez.
 Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Barrabás,
 Tenho feito análises em segredo que nenhum Marx ousou escrever.
 Mas sou, e talvez serei sempre, o das águas-furtadas,
 Ainda que não more nela;
 (Porque fui despejado)



Serei sempre o que não se auto-publicitou  para aquilo;
Serei sempre só o que tinha cêntimos;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta- e nem sequer era uma caixa de multibanco-



 E cantou a cantiga do finito numa capoeira de representantes…
 E ouviu a voz do Presidente num poço sem fundo.
 Crer em mim? Não, nem em nada.
 Derrame-me a Finança sobre a cabeça ardente
 O seu juro, a sua usura, o levantamento que iça o depósito,
 E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
 Escravos viscerais das areias movediças,
 Protestamos contra todo o mundo antes de nos deitar na cama;
 Mas adormecemos, acordados, e ele é reconfortante,
 Levantamo-nos e ele é sadomasoquista de algibeira,
 Saímos de frente do computador e ele é a terra inteira,
 Mais o sistema financeiro, a Via Láctea e o Indefinido.


(Come perceves, pequena;
 Come perceves!
 Olha que não há mais metafísica no mundo senão perceves.
 Olha que as religiões todas não ensinam mais que peixaria.
 Come, pequena suja, come!
 Pudesse eu comer perceves com a mesma verdade com que comes!
 Mas eu penso e, ao tirar o papel de embrulho, que é de folha de prata,
 Deito tudo para a pia, como tenho deitado a poupança.)


 Mas ao menos fica da amargura do que nunca terei
 A caligrafia rápida destas reais ficções,
 Pórtico partido para o possível.
 Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo com lágrimas de cera,
 Fútil ao menos no gesto largo com que atiro
 A roupa alugada que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
 E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
 Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
 Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
 Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
 Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
 Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
 Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
 Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
 Meu coração é um balde despejado.
 Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
 A mim mesmo e não encontro nada.
 Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
 Vejo as lojas falidas, vejo os passeios esburacados, vejo os carros estacionados sem gasóleo,
 Vejo os entes vivos despidos que se cruzam,
 Vejo os cães sarnentos que também existem,
 E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
 E tudo isto é estrangeiro, como tudo, como a troika.)


 Vivi, estudei, amei e até investi na bolsa,
 E hoje sou um mendigo de espírito.
 Olho a cada um os panos branqueados da justiça, as chagas da política e a mentira social,
 E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
 ( Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
 Talvez tenhas existido apenas, como um cidadão a quem cortam o rabo
 E que é rabo para aquém do cidadão, remexidamente.


Tive o que não podia ter
 E o que podia ter com , honestidade, não o tive.
O dominó em que me vi , não me deitou abaixo, como última peça de um jogo viciado.
Conheceram-me logo por quem era , desmenti e não fui preso.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Tinha rejuvenescido.
Estava embriagado pela arrogância e estupidez, adaptei-me à nova máscara , vesti o   melhor fato e dormi na suite presidencial
Como um cão  tolerado pela gerência externa
 Por ser inofensivo
 E vou escrever esta história para provar que nunca me engano.


Essência atónita dos minhas prosas cíclicas,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
 
Calcando aos pés a consciência de não ter consciência alguma.
Ou adormece-la como uma puta, fumando a espuma dos dias…
Ou como um tapete em que um mago louco se enrola.
Ou um capacho que os cambistas roubaram e ia valendo o que lhes apetecesse…



Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
 Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
 E com o desconforto da alma mal-entendendo.


Porque sabia das minhas habilidades e calou-se
Porque lhe devo um pacto de sangue…



Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei as prosas políticas.
A certa altura morrerá a tabuleta também, as prosas também.
Depois de certa altura morrerá a rede onde esteve a tabuleta dos preços,
E a língua em que foram escritos as prosas.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como prosas e vivendo por baixo de coisas como tabuletas com preços,



 Sempre uma coisa defronte da outra,
 Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
 Sempre o impossível tão estúpido como o real,
 Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
 Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para pagar o tabaco fiado?)
 E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
 Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
 E vou tencionar escrever estas fraeses em que digo o contrário.


 Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
 E saboreio no cigarro a libertação de todos as dívidas.
 Sigo o fumo como uma rota própria,
 E gozo, num momento sensitivo e incompetente,
 O aprisionamento a todas as especulações
 E a consciência de que as flutuações na bolsa é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
 E continuo fumando.
 Enquanto a bolsa mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha do meu banqueiro
 Talvez fosse feliz.)
 Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
 O homem saiu da Tabacaria (metendo o dote… na algibeira.. das cuecas sujas?).
 Ah, conheço-o; é o Esteves da Tabacaria.
 (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
 Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
 Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
 Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


        












 
 
 

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